Chamada de trabalhos - Número 44

2024-05-27

O poema onívoro

Uma das necessidades mais básicas dos seres humanos, a alimentação é ainda uma das
nossas mais importantes fontes de prazer. Investigada por inúmeras áreas do
conhecimento, ela é tão relevante que a passagem do cru ao cozido foi tratada por Lévi-
Strauss como definidora da cultura e intimamente ligada à linguagem. A poesia – de
diversos tempos, línguas e tradições – também é atravessada por esse vasto campo de
reflexão acerca do humano e de sua relação com os demais seres deste planeta, a partir
de várias cosmologias, nas quais comer remete a um sistema de comunicação e um
conjunto de imagens e de protocolos de usos, situações e condutas (Barthes, 1961). As
memórias acionadas pelos cheiros, imagens, texturas, sons e gostos do que comemos
movimentam um conjunto de associações entre escrever, ler, cozinhar, degustar,
ruminar. No Brasil, isso ocorre desde Gregório de Matos, que transforma alimentos em
tropos de suas sátiras, e chega à contemporaneidade com vigor e inventividade. Uma
das mais profícuas propostas de reflexão acerca da cultura nacional, a antropofagia
oswaldiana incorpora o ato de comer como metáfora das relações entre arte e alteridade.
Devorar e (de)cifrar se fundem na obra desse modernista central no pensamento
brasileiro do século XX, que Glauco Mattoso, décadas depois, digere em seu
“Manifesto coprofágico”, subvertendo regras e etiquetas. Já Angélica Freitas aproxima
cânone e comida, no título do seu primeiro livro, Rilke shake (2009), ao inscrever um
dos nomes mais consagrados da literatura ocidental num ordinário cardápio de
lanchonete. Comida e ancestralidade se imbricam em livros de autoria indígena e negra.
Graça Graúna, por exemplo, celebra o cultivo da terra e da palavra: “Planta-se o
inhame/ e nove meses esperar/ o parto da terra. Planta-se o caldo/ e docemente esperar/
a cana da terra./ Palavra: eis a minha safra/ de mão em mão/ de boca em boca/ uma
porção Campestre”. Conceição Evaristo associa escrever e comer: “Quando eu morder/
a palavra,/ por favor,/ não me apressem/ quero mascar/ rasgar entre os dentes/ a pele, os
ossos, o tutano/ do verbo,/ para assim versejar/ o âmago das coisas”. Esses versos
lembram-nos da nossa corporeidade e da corporificação das nossas ações, pois a boca é
um órgão compartilhado para comer e falar, para produzir a oralidade e sonoridade da
poesia, assim como as mãos e os dedos são usados para comer, cozinhar e escrever,
como no catar feijão e palavra de João Cabral de Melo Neto. A boca, locus do consumo
alimentar e da fala, não passa despercebida a muitos autores e teóricos que também
ligam comida e sexualidade (Korsmeyer 2002, 2011). Manuel Bandeira, em
“Consoada”, transforma a “mesa posta” em emblema de aceitação e enfretamento da
morte, “a indesejada das gentes” deve encontrar “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa
posta/ com cada coisa em seu lugar.” A mesa, que serve de amparo para a criação de
versos, é também evocada sensorialmente, em muitos poemas, como sinédoque de
família, memória, educação. Justamente numa mesa, nos foi dito: “E, tomando o pão, e
havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado;
fazei isto em memória de mim.” (Lucas 22:19). Nessa trilha rememorativa e anacrônica,
Ricardo Domeneck evoca os quatro avós analfabetos, numa singular história da colonização,
do escravismo, e se torna o herdeiro e guardião da narrativa familiar (e dos afazeres
domésticos), em Cabeça de galinha no chão de cimento (2023). Num país no qual milhões
de pessoas vivem em situação de carência extrema ou de insegurança alimentar, a
poesia não pode esquecer a fome, o avesso da comida como prazer e fartura, que em “O
bicho”, de Bandeira, coloca em xeque a humanidade dos famintos. Celebrando os
prazeres gozosos da cama e da mesa, enfrentando a morte, reinventando o cotidiano,
denunciando os horrores da fome, a poesia, ao longo de sua história, tem devorado os

mais variados elementos da alimentação, os múltiplos sentidos da mesa, como atesta
Carlos Drummond de Andrade: “Deixaste-nos mais famintos,/ poesia, comida
estranha”. É essa potencialidade que este número da revista Texto Poético pretende
apreender, ao receber artigos sobre alimentos e poemas de diversas línguas, culturas,
tempos e tradições.

Organização: Susana Souto (UFAL), Sabrina Sedlmayer (UFMG) e Rafael Climent-Espino (Baylor University)

Prazo para envio de trabalhos: 30/09/2024

Previsão de publicação: janeiro de 2025